Curso da Escola de Música anima verão brasiliense

nelsonfaria

Guitarrista Nelson Faria e, ao fundo, Tony Botelho

O ex-governador Agnelo Queiroz conseguiu destruir muitas coisas em Brasília. Felizmente, o Curso Internacional de Verão da Escola de Música (Civebra) não foi uma delas. Apesar do formato menor, devido à redução de despesas em 80% por causa do rombo bilionário deixado pelo petista, a programação se realiza em sua 37ª edição. Graças ao talento dos professores e ao interesse dos alunos e da comunidade, o corte de gastos não acabou com o brilho do evento, que acontece na escola, na avenida L2 Sul.

Em 2016, o Civebra irá durar 16 dias. Nesse período, estudantes de música do Brasil inteiro participam desta imersão de aprendizagem nos mais diversos terrenos do popular e do erudito, com excelentes professores nacionais e de vários países.

Além das aulas, o ponto alto do curso está nos concertos gratuitos diários que os professores apresentam. Virtuoses de seus instrumentos, deleitam a comunidade com performances extraordinárias, como a que ocorreu na noite de segunda-feira (19) na Escola de Música.

O contrabaixista Tony Botelho, um dos docentes participantes, se reuniu com alguns convidados para um show de jazz. Subiram ao palco junto com ele o guitarrista Nelson Faria, o saxofonista francês (radicado no Brasil há muitos anos) Idriss Boudrioua, o saxofonista cubano Irving Luichel, o pianista Luís Felipe e o baterista Guilherme Santana. Vale destacar que Toni e Nelson moraram em Brasília. Faria, aliás, foi aluno do legendário professor Gamela, mestre que até hoje cita como enorme influência.

Cada um no seu instrumento, os intérpretes mostraram suas afinidades com as formas do jazz combinadas a muito balanço, numa escola de suíngue instrumental que contempla no Brasil nomes como João Donato, Zimbo Trio, Edison Machado e Milton Banana. Idriss, Luís Felipe, Faria e Luichel enlouqueceram a plateia com seus solos virtuosísticos enquanto Botelho e Santana apimentaram na cozinha do ritmo.

O Civebra prossegue até 29 de janeiro como o ponto alto da agenda cultura e educativa do Distrito Federal neste ensolarado e calorento mês de janeiro no cerrado. Imperdível!

Egberto Gismonti e Orquestra à Base de Sopros mostram alma da música brasileira

Foto: divulgação
gismonti

Antes de começar a falar da série de apresentações que o compositor e instrumentista Egberto Gismonti realiza ao lado da Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, neste fim de semana, na Caixa Cultural, em Brasília, vou contar uma breve história.

Há 17 anos, eu trabalhava no caderno de cultura do Jornal de Brasília. Naquele ano, tive oportunidade de entrevistar Gismonti, que lançava CD gravado com a Orquestra Sinfônica da Lituânia. Na conversa, ao falar sobre sua música, o artista disse algo interessante. Segundo ele, no Brasil existe uma sonoridade que transcende as fronteiras entre popular e erudito, com elementos de ambos os gêneros, mas resultando em algo diferente, digamos, uma “terceira via”.

Na entrevista, Egberto se incluiu nessa escola, ao lado de Villa-Lobos, Radamés Gnatalli e Hermeto Pascoal. Seriam criadores nos quais a vertente clássica se encontra com o frevo, o choro, o baião, as canções folclóricas e tantos outros ritmos do povo.

Voltamos ao presente. Ouvindo as dezenas de discos gravados por Egberto Gismonti e assistindo a um concerto como o que foi visto na noite de sábado (15 de novembro) e que se reapresentará no domingo (16), junto com a Orquestra à Base de Sopros, constata-se que a obra desse autor não tem limites estilísticos. Trata-se de temas sofisticados que nunca se distanciam da identidade nacional. Identidade miscigenada, como bem frisou o músico.

Nas duas horas de apresentação, Egberto se divide entre o piano e a regência do grupo, composto por 17 jovens talentos. O público se depara com uma retrospectiva de mais de 40 anos de carreira. Ouvem-se composições como Água e Vinho, Anéis, Karatê, Sonhos de Recife, Música de Sobrevivência, Forrobodó e a mais conhecida de todas do universo gismontiano: Frevo.

Música erudita, avant-garde, jazz, choro, frevo e o som das bandinhas de cidades do interior dialogam durante o espetáculo, numa constelação de melodias, harmonias, ritmos e timbres, às vezes numa atmosfera calma, às vezes numa verdadeira revolução furiosa a la Stravinsky. Gismonti sabe explorar a riqueza da orquestra, que também conta com percussão, teclado e contrabaixo em meio a flautas, saxofones, clarinetes e trompetes. E o band leader, claro, brilha como sempre com seu virtuosismo e refinamento nas teclas.

Em meio à fantástica performance musical, Egberto, com seu eterno e enorme rabo de cavalo, brinda a plateia com divertidas histórias para ilustrar cada número apresentado. Um dos belos instantes é quando conta que em determinado momento de sua vida, na juventude, seu maior objetivo era ser como um tio, maestro da bandinha do município de Carmo (RJ), terra natal do instrumentista. “Até hoje, esse meu tio me acompanha por onde vou”, disse, em referência metafórica à influência do parente. E, de certa forma, com toda a complexidade presente em sua obra, Egberto Gismonti ainda conserva muito dessa pureza interiorana, um traço fundamental da alma brasileira.

Bela expressão da melancolia

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Domingo passado, assisti ao filme Control, de 2007, que mostra a trajetória de Ian Curtis, vocalista da banda britânica Joy Division. Apesar da vida curta, encerrada com um suicídio, aos 23 anos, Curtis virou ícone e deixou uma das obras mais influentes do rock.

Em Control, dirigido por Anton Corbjin, Ian é interpretado pelo ator britânico Sam Riley. O filme se baseia em livro escrito por Deborah Curtis, viúva do cantor e produtora da película que reconstitui a trajetória do roqueiro desde a adolescência, passando pela formação do Joy Division, até o trágico e precoce fim. Para quem quiser ver, Control está disponível no YouTube com legendas em português no link https://www.youtube.com/watch?v=EMldVpaK_Ig

Divisão do prazer

Nascido em 1956, Ian Curtis desde cedo demonstrou vocação para criar letras e poesias. Na adolescência, cativou-se tanto pela literatura de escritores como o beat William Burroughs como pela música de The Doors, Lou Reed, David Bowie, Roxy Music e Stooges. Aliás, foi após ver um show dos Sex Pistols, em 76, que o jovem inglês decidiu que trilharia a estrada do rock.

No ano de 77, Curtis uniu-se ao guitarrista Bernard Albrecht (ou Bernard Sumner) e ao baixista Peter Hook para formar o Warsaw. Vários bateristas passaram pelo posto até a vaga ser preenchida por Stephen Morris. Pouco depois, mudaram o nome para Joy Division (divisão do prazer, em português), espécie de bordel criado para os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial.

Pós-punk

Inicialmente com os pés no punk, que despontava mundialmente a partir do Reino Unido, o quarteto terminou enveredando pelo pós-punk. A tendência trazia letras mais complexas que as dos punks, voltadas ao existencialismo e à  introspecção, sem abrir mão da distorção das guitarras, mas com ares experimentais.

O Joy Division é o grupo mais importante da cena pós-punk. O epicentro desse trabalho se situava na personalidade controversa de Ian Curtis e em sua voz bem grave. Ele criava letras extremamente poéticas com relatos sobre angústia, solidão, sofrimento, fragilidade, melancolia, abandono e violência. 

Dança epiléptica

O enredo das composições tinha tudo a ver com seu autor. Ian sofria de depressão e para piorar ainda mais seu estado emocional, passou a sofrer de epilepsia. Conforme se pode ver em Control, ao invés de tratar adequadamente a doença, o cantor abusava do álcool, expressamente proibido pelos médicos, não raro combinando a bebida com os remédios. Volta e meia, caía no palco vítima de ataques epilépticos, que chegavam a ser confundidos com performances. Por conta das crises, chegaram a chamar a atitude de Ian Curtis no palco de “dança epilética”. 

Somou-se a esse cenário caótico o fim do seu casamento com a esposa Deborah. Ao que parece, o roqueiro não suportou a pressão. No dia 18 de maio de 1980, Ian Curtis se suicidou em sua casa, se enforcando. Morria o homem e surgia o mito. Mesmo com uma carreira meteórica, a qualidade e a força da obra foram o suficiente para que o Joy Division e seu frontman influenciassem as próximas gerações, em artistas das mais diversas correntes.

Os três remanescentes, Sumner, Hook e Morris, se reergueram das cinzas e montaram o New Order. Mas isso já é outra história.

 

 

 

Morre Paco de Lucia

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Paco de Lucía está para o flamenco assim como Astor Piazzolla para o tango. Paco, na Espanha, e Astor, na Argentina, souberam dar um formato moderno a esses gêneros, incorporando outras influências e projetando-os internacionalmente para novas gerações. Exímio instrumentista, Lucía deixou-nos nesta quarta-feira, 26 de fevereiro, aos 66 anos, vítima de um infarto. 

Originário de família de músicos, Francisco Sánchez Gómez (este era seu verdadeiro nome) começou bem cedo no violão. Aos onze anos, já se apresentava profissionalmente no seu país e em meados da década de 60 iniciou a trajetória no mundo dos discos. 

Paco conseguiu destacar-se ao injetar em um estilo de origem cigana elementos jazzísticos e eruditos que sofisticaram essa música, retirando-a do âmbito meramente folclórico e levando-a para prestigiadas casas de concerto no mundo inteiro. 

Entre os destaques na carreira de Paco pode-se citar sua colaboração com Camaron de La Isla por quase uma década, que rendeu nove álbuns. Outro grande fruto foram as gravações com John McLaughlin e Al Di Meola, principalmente o disco Friday Night in San Francisco, de 1981, um espetáculo para quem aprecia solos virtuosísticos. O espanhol ainda participou como ele mesmo do filme Carmen, do conterrâneo Carlos Saura, no qual responde pela trilha sonora. Além dessa, no cinema assina a música de películas como The Hit, de Stephen Frears.

Paco morreu em Cancun, no México, onde vivia, mas seu corpo foi levado para sua cidade natal, Algeciras, onde sua revolução sonora começou, há mais cinco décadas. 

 

Repassando

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Não sou de retrospectivas, mas não poderia deixar de mencionar fatos importantes sobre o ano que terminou nessa terça-feira (31). 

Na música, houve duas perdas significativas de lendas do rock: Ray Manzarek e Lou Reed. No dia 20 de maio, perdemos Ray Manzarek, tecladista do The Doors, uma das bandas essenciais da música pop. O tecladista, que marcou com sua genialidade no instrumento canções como Light My Fire e The Unknown Soldier, morreu vítima de um câncer.

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Lou Reed faleceu em 27 de outubro, aos 71 anos, debilitado por um transplante de fígado realizado em maio. Cantor, guitarrista e compositor, foi um dos criadores do Velvet Underground, grupo extremamente influente para as gerações pós década de 70, ainda que em seu tempo não tenha obtido êxito comercial. Lou também possuía uma carreira solo fantástica como um dos poetas do rock, com inspiração na vida boêmia de sua New York. 

E para não falarmos apenas de incidentes tristes, incluo nesse micro retrospecto a recente vinda de Stevie Wonder ao nosso país, no Circuito Cultural do Banco do Brasil. Assisti à performance desse gênio aqui em Brasília, no início de dezembro. Foi um dos melhores shows que tive oportunidade de conferir. Sessentão, Stevie mostrou porque ainda é um dos gênios da música mundial, com interpretações de clássicos como Superstition e Sir Duke

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Finalizado o texto, desejo a todos excelente 2014!

 

Banda sul-coreana Jambinai faz show memorável em Brasília

ImagemAproveitei para tirar foto, clicado por Michelle Souza, junto ao Jambinai e Pink Freud

Do outro lado da rua, o som ensurdecedor do festival Porão do Rock chegava à sala Funarte. Porém, não foi o suficiente para incomodar a performance da banda sul-coreana Jambinai. Esta também com um som para lá de potente conquistou a plateia que foi assisti-los, dentro da programação do Cena Contemporânea, evento multicultural que movimenta Brasília até o próximo domingo.

Metal, noise, punk, industrial, progressivo, oriental. Uma combinação de tudo isso em algo completamente original é como se pode definir o som do conjunto, um trio que reúne um baterista e baixista como convidados. O uso de instrumentação típica do Extremo Oriente com guitarra, baixo, bateria, computador e sopros cria uma muralha sonora.

Ora pesado como um Sepultura, às vezes ruidoso como um Sonic Youth, em certos momentos etéreo como um Cocteau Twins e em outras ocasiões próximo ao pop experimental de tonalidades sol-nascente de um Ryuichi Sakamoto, o Jambinai trabalha com a matéria-prima da inovação e rompe fronteiras. Esses diversos cenários se alternam e se fundem com naturalidade impressionante, que conduz o ouvinte a uma verdadeira viagem, como aquelas do space rock do Pink Floyd nos anos 70.

O guitarrista, cujo nome escrito em coreano no encarte do CD deles sou incapaz de traduzir, mostrou-se extremamente simpático. Em português só conseguia falar “obrigado” e o inglês saía com dificuldade. Apesar da barreira da língua, seu carisma cativou o publico. “Da próxima vez que vier ao Brasil, pretendo estudar um pouco de português para me comunicar com vocês”, disse. E emendou em tom brincalhão, arrancando risos: “Talvez deva estudar um pouco mais de inglês também”.

Essa foi a primeira vinda do Jambinai ao Brasil. Tanto a audiência como os músicos gostaram bastante. Prova disso é que os CDs e camisetas à venda se esgotaram num instante.

Após o show, eu e minha querida Michelle Souza fomos ao camarim conhecê-los. Muito simpáticos, deixaram-se fotografar conosco. E qual não foi nossa surpresa quando os músicos do grupo polonês Pink Freud, que estavam na plateia, deram as caras para cumprimentar os coreanos. Não perdemos a oportunidade de sair na foto junto aos membros de tão revolucionárias bandas, duas das mais importantes do cenário musical de nossos dias.

Parabéns aos organizadores do Cena Contemporânea por trazerem artistas tão interessantes a Brasília como esses que acabamos de mencionar.

Biografia narra história de um dos deuses da guitarra

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Não sou entusiasta de biografias. Acho a maior parte delas um saco. Em se tratando de livros sobre astros pop, torço mais ainda o nariz, pois a maior parte desses trabalhos se constitui de textos essencialmente comerciais e apelativos, que chamam a atenção pelas fofocas e não pelo valor musical do artista. Prova disso é que até um fedelho tipo Justin Bieber se considera apto a publicar algo para falar de sei lá o quê.

Encantou-me Luz e Sombras, sobre Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin, por tratar essencialmente do trabalho do músico e não para se aprofundar em baboseiras como satanismo e com quantas groupies o cara transou.

Com o mesmo espírito, atirei-me a Iron Man, que reconstitui pelas próprias palavras a trajetória de Tony Iommi, guitarrista do Black Sabbath. Não me arrependi do tempo dedicado à leitura desse título, bastante divertido e que relata a história de um dos mitos do rock’n’roll.

Iron Man é assinado por Iommi em parceria com o jornalista T.J. Lammers. O livro recupera os momentos mais marcantes da vida de Tony, desde a infância pobre, como filho de imigrantes italianos, em Birmingham (Inglaterra), passando pelos primórdios em bandas obscuras, ao sucesso com o Sabbath, um dos ícones do heavy metal.

Um dos momentos mais interessantes se dá quando se narra como o acidente com Tony Iommi, numa fábrica, que culminou com a perda da ponta de dois dedos, influenciou seu jeito de tocar. O guitarrista precisou reinventar sua técnica, usando dedais para aliviar a dor e cordas mais finas para tocar com facilidade. Nesse processo, credita-se o surgimento do estilo arrastadão dos riffs do músico, uma das marcas do Black Sabbath.

O livro é longo. Não dá para me ater a grandes detalhes neste comentário, mas cito, entre o que me chamou a atenção, a forma de compor do quarteto britânico. Tony conta que ele criava os riffs. A partir das melodias do cantor Ozzy Osbourne, que surgiam na hora, o baixista Geezer Butler escrevia as letras.

O instrumentista também descreve o perfil dos seus colegas de banda. Ozzy é o alucinado, Geezer, o riponga vegetariano, enquanto Bill Ward se destaca pelos hábitos não muito higiênicos, como usar a mesma roupa por vários dias. Nesse meio, Iommi se descreve como  ponto de equilíbrio, tentando pôr ordem na casa. Mas vai colocar ordem no boteco com tanta cocaína na jogada. Por falar em drogas, não faltam relatos sobre os abusos cometidos pelos membros do grupo.

O livro aborda o ápice e a decadência da formação clássica do Sabbath, e passa pelas inúmeras mudanças no line-up nos anos 80 e 90, a maioria das vezes apenas com Iommi como integrante original. A vida pessoal do músico, com seus relacionamentos, não fica de fora e, finalmente, ele chega à reunião definitiva do Sabbath com Ozzy, que começou no fim da década de 90 e dura até hoje, e a seus trabalhos solo. O roqueiro apenas omite o câncer que teve recentemente.

Devo muito a Tony Iommi e à música dele com o Black Sabbath. Até dediquei meu primeiro livro, Não Abra Contos de Terror, à banda. Sou influenciado pelo som e pelas letras que criaram e meus contos de terror não teriam sido os mesmos sem essa preciosa referência. Mais uma razão para ter me deleitado com Iron Man.

Em outubro, eles vêm aí. Nem sei se irei assistir ao show, mas a música heavy metal do Sabbath é algo que sempre me acompanha.

Dois irmãos em Paciência

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O taxista, ao ouvir falar do lugar para onde iria, já avisou que seria caro.

– Paciência! Isso é muito longe.

– Não tem importância. Vou visitar meu irmão.

– Você quem sabe, chefe. Vamos nessa.

Durante a viagem, foi vendo os bairros passarem ao longo da Zona Norte, rumo ao Subúrbio, enquanto ouvia o motorista fazer piadas com o nome do longínquo bairro.

– Realmente o sujeito tem que ter muita paciência pra viver num lugar desses.

Contou o tempo: uma hora e meia. Mais longo esse percurso do que a viagem de avião que fizera até o Rio de Janeiro.

O táxi entrou por uma estrada de barro rumo ao destino final, a casa de Cássio. Precisaram parar várias vezes e perguntar aos moradores até chegarem à rua. A casa do irmão, conforme lhe fora informado, era a última no fim da rua. Um grupo de jovens sentados fumava algo que presumiu ser crack. Quando o carro passou por eles, olharam com expressões nada amigáveis.

– Isso aqui onde seu irmão mora é barra pesada.

Pararam em frente à casa. O taxista olhou pra ele e anunciou o preço salgado da corrida. Meteu a mão no paletó, tirou a carteira e deu as notas ao homem.

– Não vou esperar. Não tem a menor possibilidade de ficar aqui. É perigoso.

– Tudo bem. Eu me viro pra voltar.

O motorista tirou um cartão do bolso da calça e entregou ao rapaz.

– Tem meu celular. Se me ligar, tento voltar, ou vejo se vai ter algum colega por perto que possa te apanhar.

– Obrigado.

Desceu do táxi. A casa pequenina parecia em ruínas. Gritou o nome do irmão, enquanto o carro rapidamente manobrava para virar e partir.

Cássio apareceu. Estava sem camisa, apenas com uma bermuda jeans e um chinelo Havaianas.

– E aí, irmão. Como é que você tá? – perguntou Cássio.

Há anos que não o via. Achou Cássio muito magro. O dono da casa abriu um pequeno portão de ferro e abraçou o visitante.

– Bem vindo. Vamos entrando.

Seguiu o irmão para dentro. Entraram por uma porta.

Por dentro, tudo muito simples. Havia uma mesa velha de madeira no que seria a cozinha, com um monte de louça suja na pia.

– Não vai estranhar a pobreza.

– Claro que não. Até parece que reparo nisso.

Mas reparou. Na parede, havia um velho poster de jornal do Flamengo. Reconheceu Zico agachado em meio aos outros jogadores. O irmão pediu que se sentasse à mesa.

– Aceita um café?

Respondeu que sim. O irmão botou uma panela no fogo com água. Tirou da bermuda uma carteira de Derby e acendeu um cigarro. Cássio estava com os cabelos black power totalmente brancos. Nem era tão velho, mas aparentava mais de sessenta, com o rosto cheio de rugas.

– E mãe, como tá?

– Tá bem – respondeu o jovem.

– Legal. Cara, tô feliz demais de você estar aqui.

– Eu também – disse, tentando sorrir. O ambiente de extrema pobreza na verdade o intimidava, causando tristeza.

Cássio pegou um pote marrom de plástico, do qual tirou duas colheres de café, que jogou na panela. Enquanto tragava o cigarro, esperava o café ficar pronto. Pegou dois copos de vidro e os lavou. Jogou o cigarro na pia e apagou o fogo. Pegou a panela e encheu os copos. Deu um para a visita e pegou o outro para si.

– Tô pobre, irmão. Mas ainda tenho um dinheirinho pra comprar o café.

O rapaz deu um gole. Estava bom, porém não conseguia engolir. Seu coração palpitava. Cássio falava um monte de coisas, entretanto, não prestava atenção. Seu pensamento ia longe.

Lembrou que o irmão, desde cedo um talento, virou um músico de soul brasileiro. Veio a imagem dele cantando nos programas de TV. Suas músicas fizeram tanto sucesso no rádio. Era para estar rico. E ali estava, na miséria. Dizem que cheirou demais e isso acabou com seu trabalho. Muito pó. Torrou toda a grana e pirou. Faltava aos shows. Não demorou muito para levar um pé na bunda do empresário.

Na última vez que se falaram, dizia que estava retomando, que um produtor de Sampa tinha se interessado pelos seus discos antigos, que iria relançar sua carreira, que sairia de Paciência e voltaria a morar em Copacabana, num apê tipo aquele antigo, na Rainha Elizabeth, pertinho da praia.

Sabia que nada disso aconteceria. Só queria que o irmão fosse embora com ele, de volta para casa, para perto dos pais. Cássio falava e as lágrimas caíam dos olhos do jovem irmão.

Lá pelas tantas, não se conteve. Levantou-se e foi até Cássio, que o encarou espantado.

Não conseguiu fazer mais nada. Apenas abraçou o irmão, com força. Soluçava, enquanto sua face se enchia de lágrimas. Não dizia nada, apenas chorava muito, com uma imensa dor no coração.

– O que foi meu irmão? O que tá acontecendo com você? – perguntou Cássio. A vítima da tragédia parecia se transformar no consolador daquele que, tão forte, com uma missão importante, desabou diante da fragilidade do irmão.

– Me desculpe – falou o rapaz.

– Por quê?

O rapaz não respondeu. Permaneceu em seu choro descontrolado.

Baixaria em ritmo bate-estaca

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Inteligência é tudo que não se vê num baile funk

A música brasileira, infelizmente, parece cada vez mais contaminada pelo lixo. Não é de hoje esse fenômeno. Já se vão quase três décadas desde que gêneros de massa, sem qualidade, começaram a tomar o lugar dos grandes artistas na mídia e no gosto das classes mais altas.

O funk é um dos estilos que dominam o gosto duvidoso. Trata-se de uma música execrável, um bate-estaca de letras chulas que apenas no nome guarda semelhança com o funk americano, sonoridade de gênios como Curtis Mayfield e George Clinton. Se o original dos Estados Unidos, bem assimilado no Brasil por grupos como a Banda Black Rio, apresentava caráter libertário, contra o racismo e a opressão dos negros, a versão carioca escraviza as mentes dos seus apreciadores.

Musicalmente pobre, nas letras o funk nacional demonstra possuir QI negativo. As temáticas não variam; dizem respeito principalmente à apologia ao crime e à exaltação do sexo banalizado, da dominação do homem pelos sentidos, que o igualam a uma besta fera.

Longe aqui de querer transmitir um discurso moralista. Pelo contrário, acredito na liberdade sexual. Porém, esse som está longe de ser algo liberal. O funk prega a submissão da mulher, transformada num simples objeto. Objeto muito burro, diga-se de passagem, já que as cantoras de sucesso dessa tendência entoam letras que as humilham, agridem e insultam. No enredo desses hits, coisas do tipo “dá c… é bão” ou “mete na minha x…”. Um roteirista de filmes pornôs consegue produzir textos mais inteligentes.

Do ponto de vista performático, o cenário piora. Assistir a cenas de um baile funk dá a impressão de que seus participantes ainda vivem numa sociedade tribal ou forma de organização ainda mais primitiva. Sociedade essa onde princípios básicos de civilidade parecem longe de chegar.

Uma das provas disso é que, recentemente, o Ministério Público começou a investigar um desses conjuntos de dançarinas, pois das quatro integrantes, responsáveis por uma coreografia imbecil chamada Quadradinho de 8, três são  menores de idade. O fato caracteriza exploração sexual das meninas, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Vindo de uma música de tamanha pobreza artística e humana não poderíamos esperar atitude melhor.

Sinceramente, me pergunto se alguém com um mínimo de intelecto e sensatez vai gostar de um lixo desses. A resposta, claro, é não.

Thelonious, gênio absoluto

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Nesta noite de cansaço, passeando com o controle remoto pela TV, dou de cara com uma joia dos documentários musicais: Straight, no Chaser, de 1988, sobre Thelonious Monk, um dos maiores pianistas de todos os tempos. O filme tem direção de Charlotte Zwerin e produção de Clint Eastwood.

Thelonious enquadra-se entre artistas que avançaram e com sua originalidade levaram a música a novos patamares, a exemplo de Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Duke Ellington e John Coltrane. Basicamente um autodidata, considerado um dos criadores do bebop, evoluiu para algo absolutamente peculiar, muito difícil de rotularmos.

Compositor e instrumentista, alcançava efeitos melódicos e rítmicos impressionantes com  poucas notas. Em sua obra, não há nada desnecessário, tudo se encaixa com perfeição. Deu vida a temas antológicos do jazz, entre eles Round Midnight, Ruby my Dear, Blue Monk e Epistrophy.

Straight, no Chaser conta a trajetória do pianista e utiliza principalmente imagens no palco e no backstage, em turnês no começo dos anos 60. As performances são de deixar qualquer um de queixo caído. Acompanhado de feras como os saxofonistas Johnny Griffin e Phil Woods, Thelonious se destaca quando a câmera foca os longos dedos do pianista deslizando por seu instrumento, com simplicidade e tranquilidade surpreendentes.

A produção também lança olhares sobre o ambiente pessoal de Monk. Em certa fase, ele começou a sofrer de transtornos mentais, como a esquizofrenia. O músico americano parecia viver em outra dimensão.

Volta e meia, rodava o corpo e olhava para o infinito, dizia frases aparentemente desprovidas de sentido e apresentava uma expressão apática. Sua esposa, Nellie Monk, aparece como guardiã do pianista, cuidando de cada detalhe daquela existência dispersa, da escolha das roupas ao acompanhamento das refeições.

No filme, percebem-se rompantes de agressividade, quando, insatisfeito com uma de suas interpretações, Thelonious para a banda em um tema e, horas mais tarde, dá uma pancada em uma persiana.

Quem visse um Monk alucinado no cotidiano e não o conhecesse dificilmente imaginaria o que aquele sujeito era capaz de fazer quando sentava ao piano. Ali, a introspecção tomava a forma de notas que cativavam o público, conforme se vê neste documentário.

Thelonious Monk morreu em 1982, vítima de uma hemorragia cerebral. O filme recupera as imagens sensíveis do enterro do instrumentista, cercado por seus antigos companheiros de jazz. Fim da pessoa, mas não de uma das obras mais influentes e maravilhosas da música. Foi uma figura ímpar e um revolucionário.